segunda-feira, 19 de julho de 2010

A Calçada e o Homenzinho.

Eu sou apenas uma calçada. Por mim, passam todos os dias solados finos, solados pobres, ora limpos, ora sujos. Pisam leves, suaves, fazem cócegas e também correm. Outros passam fortes, duros e machucam sem dó. Nem me notam, nem me vêem... Sirvo de colchão para pobres miseráveis e cachorros de todas as raças vira-latas. Mas te digo que meu corpo é feito de preto e branco, e em algumas partes acinzentado. E te digo também ouvir dizerem as línguas mais insanas – que de tão insanas me lambem – que pra nascer eu tive de ser superfaturado. Mas não posso me alongar até certa estradinha medíocre, onde dizem as mesmas, haver uma casinha sem cor, sem vida, e que lá, apesar de suas reles visões, existe um coração que bate como a marretada d’um romântico e forte carpinteiro. E é só por isso que me agradam estas tais línguas que me lambem.
Dizem elas então: “... ele é tão digno de pena que nem mesmo um pássaro chega a lhe fazer companhia ao soar do dia...”
Apesar disto, eu irei dobrá-las, sacrificá-las, persuadi-las e dominá-las para espremer de suas glândulas todas as gotas de saliva por ele. Sim, farei isso e não me estranhe, pois logo vão me entender e o porquê de tanta curiosidade. Vão entender também que boa parte do que elas dizem são palavras sem sentimento e que falam por falar, sem o mínimo julgamento, mas eu que sou apenas uma calçada de segunda mão consigo decifrar-lhes o veneno e fazer dele o mel que embalsama as rachaduras da alma.
Naquele dia de praxe e Sol quente me refrescavam elas com seus venenos de mel. Elas citavam a rotina estranha e pacifica do pobre homem. Diziam elas: Ele acorda pela manhã e sai pela porta do fundo lavar as mãos no tanquezinho. E ao secá-las muito bem com o auxílio de uma toalhinha suja por entre os dedos, como um exercício religioso e maçante de todos os dias de sua vida, o mesmo torna a sujá-las. Não lava o rosto como os outros e nem escova os dentes. Então ele se senta sob uma única árvore que sombreia a casa e muito insignificantemente. Seus olhos parecem mirar algo inexistente naquele lugar forrado de mato verde agonizante. Parecem ver o horizonte como se o mesmo fosse concretizado em um paraíso existente somente ali, para ele. De vez em quando ainda se esforçava para alongar-se em saltos numa vã tentativa de agarrar algumas folhinhas da árvore infrutífera. "Causa-nos tédio a sua falta de agressividade." Segue para dentro, volta e começa um longo dia sem se ver o pobre novamente voltar à dependência interna da casa. Ali mesmo, martela, serra, cola e lixa, e tudo mais que se pode notar num trabalho árduo. Não pára por nada e não se vê resultado. É como se a matéria se desmaterializasse numa mágica tão perfeita que nem se nota a magia. É digno de dó apesar da magia, pois do que vive este homem se nada come, nada vende e nada compra. Seria ele um anjo de Deus que seguindo ordens desce a Terra para viver assim, estranhamente infeliz. E o que me intriga: como podem as línguas tecerem tal idéia de infelicidade se nem ao menos chegaram perto do homem? Como podemos designar tal infelicidade gratuita a alguém que mal conhecemos além da vista? Por que o trabalho gratuito é sinônimo de infelicidade, e será que existe trabalho insignificante a tal ponto de ser gratuito? Línguas falam, mas não tecem. E por falarem demais sempre tomam caminhos obscuros e mal assombrados. Prefiro os pensamentos que tomam caminhos malditos, mas se encontram mais tarde numa nascente de água cristalina, com um Sol radiante refletindo em suas águas rodeadas de mata virgem e riquezas mil. Um paraíso que só podem usufruir os pensadores gratuitos, como o nosso homenzinho.

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