domingo, 31 de julho de 2011

Passos

Passos, passos, passos... Ando pelo asfalto, mas não sou carro, borracha, ou bolacha, sou gente, quente, que sente e chora.

Uma musica que me passa, não passa, mas altera minhas perspectivas, minha visão e meu coração.

Seu Adolfo, eu posso ir? Já são sete e vinte e cinco, e estou cansada.

Cinco minutinhos pra um cafezinho, Seu Adolfo? Vai. Um cigarrinho Seu Adolfo? Tudo bem... Seu Adolfo? Pode ir... Espere mais um pouco Marta, pois estes minutinhos à mais não vão te matar, não é mesmo?

Seu Adolfo, eu acho melhor o senhor procurar outra pessoa, pois estou farta dos seus minutinhos a mais. Quer saber de uma coisa, Seu Adolfo, to fora! Fora!

Espera Marta, não me faça isso, pelo amor de Deus...

Deus. Deus? Que Deus, Seu Adolfo? Você vive me dizendo: Martinha, meu docinho, não reze muito, pois quem muito reza, acaba na sarjeta. No mundo só há lugar pra dois tipos de gente: os espertos como eu, e as mulas como o Vanderlei, mas para os que rezam como você, Martinha, só há lugar no céu. Poupe-me, Seu Adolfo. To fora, fora!

Martinha, meu coração...

Ai, Martinha meu coraçãozinho, pede pro Seu Longuinho achar minha pastinha, pede... Dou um pulinho, lá no Banco do Brasil, saco um dinheirinho, e oh Martinha, te dou uma gorjetinha... Francamente Seu Adolfo, estou farta de você, do seu dinheirinho, do escritoriozinho, da sua mulherzinha e do seu focinho. Tchau, Seu Adolfo. Fui.

Desgraçada, se não fosse a bunda, juro que matava!

Passos, lágrimas e frio.

O seu filho está nas drogas, te responde, ele te rouba, mente pra você, você já está farto, farto das mentiras, você está a ponto de perder a cabeça e matar seu filho ou se matar, seu casamento está na naufragando, seu amigo te passou uma rasteira, sua mulher te trai, você bebe e chora, bebe e chora... Meu Deus, quando isso vai acabar? Eu quero morrer Meu Deus, eu quero morrer! Mas Ele não olha por você Ele não existe mais, Ele se esqueceu de você, do seu filho, da sua família, de tudo... É CULPA DELE... DO DIABO... DO SATANÁS! Sai daí meu filho, saia já, por favor, meu filho eu lhe imploro, venha pro reino dos céus, o único e verdadeiro reino da verdade, da paz, da harmonia e do sucesso. Reerga a cabeça, meu filho, pare de sofrer, pare de sofrer... Senhor pelo poder de sua fé salve este filho, salve está alma imunda deste pobre, pelo poder que lhe foi concebido, que me foi concebido, SAIA JÁ! ALELUUUIAAA!

Asfalto, chuva e respiração. Passos, passos, passos e musica. As luzes “amarelo-sujas”, os bichinhos das luzes, as cruzes, os prédios, as casas em ruínas, as mulheres quase nuas, as ruas sujas, os fios e restos de pipas.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Texto Teatral

BRINCADEIRA IMAGINÁRIA Victor Hugo Marson

Sons de crianças e ventania. Poucas luzes se acendem como num universo paralelo. Um montinho de areia, e só. As personagens parecem pedras de gelo e em rápida sublimação, ganham vida lúdica.

Dóris – Por que você tem um dente pra frente e outro pra trás?

Carlos Eduardo – Para sair o ar.

Dóris – Ah (esconde o riso, PAUSA LONGA) Me dá um pedacinho da sua torrada?

Carlos Eduardo – Não, estou com fome. Minha mãe disse que a comida em casa é escassa e eu tenho que aprender a valorizar. Ela disse assim, oh: Murilo, quando eu compro algo é para você comer, você, entendeu?

Dóris – Ah. (soluça) De vez em quando me dá vontade de comer alguma coisa que outra pessoa está comendo. Você também tem isso?

Carlos Eduardo – Não.

Dóris – Por que você é tão chato, hein?

Carlos Eduardo – Eu não sou chato.

Dóris – É sim, você deve ser daqueles boboquinhas que ninguém chega perto. Fica brincando sozinho no recreio. Conheço uma menina na escola, que dizem que ela já tem até amigo fantasma.

Carlos Eduardo – Amigo imaginário, boboca.

Dóris - Desde quando você tem um?

Carlos Eduardo – Eu? Eu... Como você sabe?

Dóris – Eu vi você passando no corredor da escola. Vi sim. Vi pelo vidro da porta. A senhora Trumbel falava demais dos acontecimentos na casa dela, sabe. O marido que bebe demais e espanca o filho, o filho que não passa de ano e outras coisas que já sabemos de cor. Então olhei fixamente para o vidro redondo da porta, queria me distrair. Vi você. Passou rapidinho, mas depois percebi que falava com alguém. Quem era?

Carlos Eduardo – Quando?

Dóris - Hoje mesmo, depois do recreio.

Carlos Eduardo - Não havia ninguém comigo sua boba.

Dóris - Claro que tinha, ou então, além de chato você é um bobão que fala sozinho.

Carlos Eduardo – Bobão...

Dóris - Fala logo! Você tem um?

Carlos Eduardo - Não quero falar sobre isso. Ele não gosta.

Dóris – Ele quem? Como ele chama? Fala só pra mim.

Carlos Eduardo - Não enche. Vou entrar senão minha mãe vai ficar brava comigo, tenho muita lição pra fazer. Tchau, boboca.

Dóris – Tchau (enfurecida)

Carlos Eduardo – Você pode me responder uma coisa antes?

Dóris – Depende boboca.

Carlos Eduardo – O que você viu quando eu passei no corredor?

Dóris – Ah, você parecia que gesticulava, mas não era musica não, pelo menos acho que não. Você falava com alguém ao lado, alguém que não deu pra ver.

Carlos Eduardo – Claro.

Dóris – Claro? Como claro? Nada está claro.

Carlos Eduardo – Claro que você não viu ninguém. Não havia ninguém. E ponto.

Dóris – Ponto, ponto, ponto, ponto, ponto, ponto... (segue irritantemente repetindo, como disco riscado)

Carlos Eduardo – Pára Dóris, já cansou. Tenho que ir.

Dóris – Ir pra onde?

Carlos Eduardo – Pra casa, fazer lição, escovar os dentes. Se minha mãe descobre que comi e não escovei os dentes, ela vai ficar furiosa.

Dóris – Dá um sorriso pra mim?

Carlos Eduardo – Claro! (sorri forçado, ridículo)

Dóris – Ótimo! Agora além de lunático, você tem os dentes tortos mais amarelados que já vi.

Carlos Eduardo – Pára Dóris!

Dóris – Não paro, não paro, não paro... (disco riscado)

Carlos Eduardo – Está bem Dóris, fecha essa maldita boca, sua putinha de luxo! (Dóris se assusta, não entende muito bem, soluça.) Não chore! (Dóris soluça novamente) Você nem sabe o que é isso.

Dóris – Claro que sei.

Carlos Eduardo – O que é?

Dóris – É alguma coisa ruim, só isso.

Carlos Eduardo – Mentirosa, sabe nada, meu pai que me disse: Filho, quando você crescer, vai ser tão rico, tão rico, que ao invés de casar com uma mulher como sua mãe, você vai arrumar uma putinha de luxo! Elas são bem mais bonitinhas, e não reclamam do desempenho.

Dóris – Desempenho?

Carlos Eduardo – Pois é, isso eu não entendi muito bem. Mas que era coisa boa, era. Não te disse.

Dóris – Ta bem, não ia chorar mesmo.

Carlos Eduardo – Mentirosa!

Dóris – Eu não minto, não falo com “ninguém”, e oh (faz gesto de quantidade com as mãos) estou cheia de amigos pra brincar no recreio. Devo ser uma putinha de luxo, como seu papai disse. (PAUSA) Sabe, ele só mentiu pra você numa coisa.

Carlos Eduardo – No que?

Dóris – Você nunca vai casar com uma putinha de luxo como eu, nunca, nunquinha!

Carlos Eduardo – (cansado) Tchau Dóris.

Dóris – Você não vai me falar mesmo? Quem sabe quando eu crescer eu mude de opinião.

Carlos Eduardo – Falar o quê?

Dóris – O nome dele, ou dela.

Carlos Eduardo – Dóris não tem nada! É tudo imaginação da sua cabeça! Pára! Não enche! Tchau!

Dóris - Vai logo. Nunca mais fala comigo! Laia!

Carlos Eduardo – Que?

Dóris – Laia!

Carlos Eduardo – O que é?

Dóris – Laia! Laia! Laia!

Carlos Eduardo – Saco! Saco! Saco!

Dóris – Pára de me imitar. (quase chorando de raiva)

Carlos Eduardo – Então me diz o que é laia?

Dóris – (respira fundo) Laia? Bem, minha mamãe sempre diz aos vendedores que batem à porta: Não quero! Não Volte! Não gosto! Não falo com gente da sua Laia! (ri baixinho) Eu acho muito engraçado quando ela fala isso: Laia! Mas sei que é palavrão.

Carlos Eduardo – Ah... É... Deve ser.

Dóris – Você não ia embora?

Carlos Eduardo – Ah, minha mãe saiu, volta tarde. Você não quer mais brincar comigo?

Dóris – (fecha a cara) Não sei.

Carlos Eduardo – Por que você está zangada?

Dóris – Por que você não me diz o nome dela, e eu não gosto de ter concorrentes.

Carlos Eduardo – Quem é ela? Que concorrentes?

Dóris – Não começa Carlos Eduardo, senão está tudinho acabado! Esteja dito!

Carlos Eduardo – (impaciente) Dóris, do que você está falando?

Dóris – (zangada) Você não queria brincar? Você não sabe brincar! Agora tchau mesmo, boboca. (SAI)

Carlos Eduardo – Volta! Volta! Quem é ela? Saco! (SAI)

BLECAUTE LONGO: Sons de crianças e ventania.

Dóris está sentada num montinho de areia. Vê Carlos chegando tímido, finge que não o vê e faz de conta que conversa com alguma amiga só em ruídos baixos. Carlos fica curioso, primeiro olha à distância, depois se aproxima um pouquinho e pára.

Carlos Eduardo – Você também? (Dóris na mesma) Você também Dóris? (PAUSA) Dóris? Se você me falar o nome do seu, eu te digo o nome do meu. (Dóris pára de fingir, assustada e medrosa, mal olha para Carlos e corre) Dóris! Dóris! Dóris! (PAUSA LONGA) Que foi? Agora não! To bravo com você. Você tinha falado que conhecia todos como você, que eram poucos e que ela não tinha. Você me quer a toda hora. Não me deixa brincar com os outros iguais a você, nem com outros como eu. Sai! Sai! Sai! (Senta no montinho, cabeça baixa, soluça, fica)

“Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi...”
(Dóris interrompe)

Dóris – (sussurra) Carlinhos.

Carlos Eduardo – (salta) Dóris, você me assustou!

Dóris – Desculpe, desculpe mesmo. Agora que já sei do seu segredo, você podia apresentar seu amigo pra mim. Podemos formar um trio.

Carlos Eduardo – Não dá mais.

Dóris – Por que não?

Carlos Eduardo – Mandei ele ir embora.

Dóris – Boboca! Por que você fez isso?

Carlos Eduardo – Ah, sua chata! Você saiu correndo de mim e eu fiquei bravo com ele, porque ele não me disse que você também tinha um.

Dóris – Não, não tenho. Só fingi.

Carlos Eduardo – Mentirosa. Olha só aqui pra mim, Dóris. Nunca mais quero falar com você, nem ninguém, ninguém! (SAI)

Dóris – (choraminga) Volte aqui, por favor... Volta... (senta-se no monte de areia, abaixa a cabeça e fica)

“Era uma casa
Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia

Entrar nela não

Porque na casa

Não tinha chão

Ninguém podia

Dormir na rede

Porque a casa

Não tinha parede

Ninguém podia

Fazer pipi

Porque penico

Não tinha ali

Mas era feita
...”

(algo interrompe e Dóris assusta) Quem é? (mais encolhida) Quem é? (soluçando) Pára Dudu. (grita) Pára! (chora)

A LUZ APAGA

“... Mas era feita
Com muito esmero

Na Rua dos Bobos

Número Zero.

FIM

Musica “A Casa”; composição de Vinicius de Moraes.

Victor Hugo Marson

sexta-feira, 1 de abril de 2011

ANJINHO!

Meu anjo da boca melada,

Dos sonhos, da paz,

Da cara pintada.

Meu anjo, anjinho de sons,

Minha melodia de ninar,

Minha proteção, meu ninho.

Vem cantar pra mim,

Bem mansinho pra não assustar,

Voa e dança que te adoro.

Preciso do seu carinho,

Vem pra cá, vem anjinho.

 

Anjinho do céu que dele vem brilhar,

Estrela não fica pra ver,

O que ele pode me mostrar.

Só fico eu, é só pra mim,

Só vai e vem, anjinho

Só canta bonito pra mim.

 

Oh, anjinho de cristal

Não quebre, não caia,

Não seja tão frágil.

Oh, anjinho trapaceiro

Não brinque comigo,

Pois não sou brinquedo.

 

Cuida de mim anjo,

Canta só pra mim,

Fecha a porta anjo,

O conto não tem fim.

 

Será que esse amarelo pode estar

Dizendo, que o lindo avermelhar

É tarde de verão, mas que já vem

No fim do túnel imensa escuridão?

Não anjinho, não!

Fique mais um pouquinho, assim,

Escondidinho, só pra mim.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó



(...)
Acho que a escrivaninha surrada, com duas gavetinhas e um pequeno vaso de flores sem flores é a coisa mais valiosa que tenho em casa. As folhas me levam a descobrir as flores, que por sua vez me levam a pensar em cores. Cores que faltam em uma história que anda vagarosamente sem saber se haverá, será, amará, se poderá ser enfim. Espero achar algo de tom ensurdecedor enquanto tiver raiva para não precisar gritar, encontrar cor pra alegrar os dias mais nebulosos, conseguir pisar num lugar capaz de fazer existir o que pensam os sonhos.
“Tchau vó. Ligo assim que chegar lá.”
Preciso estar livre de tudo isso, sim, estar livre do rastro dos que me perseguem e acham-se no direito de dizer os caminhos certos, pois deles só quero o mais errado, o desprezo, é isso, é do desprezo de todos que preciso pra subir degraus mais altos, pra sublimar os desejos em vida, preciso de todos contra um, de todos assustados com o talento e a independência do ser mais verdadeiro daqui, do coração.
De um ponto pra outro, uma estação, metro, baldeação, outra estação, outro ponto, ponto final.
Desci no ponto certo, caminhei, era tardezinha, escurecia e refrescava entre as casas e estabelecimentos de um cenário natal, da padaria do Nadir à do Cardoso.
“Boa tarde Cardoso, Bel.” Já era Belisa cansada e envergonhada, tímida.
Cardoso cambaleava entre copos e bêbados, garrafas vazias e seu choramingo de coitado.

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
O elevador é assustador, ele treme e ruge demasiadamente, os pés ficam dormentes, algumas agulhadas nos vasos sanguíneos, as costas e ombros ficam tensos, o corpo toma o tamanho de um bebê, uma leve tontura, alguns ecos nos tímpanos, os olhos piscam inquietantes como as luzes do teto, algo parece flutuar por um único instante, depois parece despencar nove andares num milésimo de segundo, não despenca, pára, brusco, rosto pálido, abre e nasce outra vez.
"Meu bebê, como você está?.. Entra!.. Pega o cinzeiro... Quero no copo americano... Já pôs açúcar?.. Tá trabalhando?.. Tua mãe era linda... Olhe esta foto... Seu pai? E os estudos? Desistiu de tudo?.. Que bom que você gostou, faço esta farofa há séculos e mesmo assim fico com medo quando é pra você... Cuidado com o sofá que ganhei da sua tia...Tá namorando?.. Tem se cuidado?.. Passa outro cafezinho meu bem?!"
Os primos e as primas estavam todos formados, ganhando aos tubos, viajando por aqui e acolá, sendo objetos de orgulho para os pais, todos cheiravam bem, eram lindos, nos porta retratos todos brilhavam à minha frente, eram como coelhinhos da páscoa que só botavam ovos de 1 quilo ou mais, suas árvores de Natal eram carregadas de enfeites por todos os ângulos, não como aquelas que só se pode olhar em cento e oitenta graus, seus presentes eram caros, suas vidas eram planejadas, assim como os móveis de seus imóveis de luxo, casavam, descasavam, processavam, adotavam, davam entrevistas, enfim, eles eram tudo o que este bebê de trinta e dois não era e não será, para não ser cuspido de uma forma tão pedante.
“... Você está me ouvindo? É claro que não, tá sempre neste mundo fechado, de mal com tudo e todos, todos eles te amam, querem saber de você, e o que eu falo? Hein? Diz-me o que dizer de você? Jovem, capaz como os outros, mas prefere uma vidinha medíocre, prefere sofrer, carregar, isso não é coisa pra você, não foi pra isso que eu te criei...”
Queria explodir. Queria que todo aquele apartamento mobiliado de presentes ficasse manchado do sangue fétido de pobreza.
“Licença, preciso ir ao banheiro.”
Vomitei, chorei, vomitei de novo, tentei não fazer barulho, lavei o rosto, a boca, as mãos, a boca... Fiquei a olhar pro espelho um tempo, um bom tempo.

sábado, 8 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
Passei pela padaria do Nadir. A Pães&Petiscos tinha muitos clientes que outrora eram da padoca do Cardoso. Acenei para alguns conhecidos, acendi um cigarro e segui na direção do ponto. No caminho, um bêbado cantando, um mendigo dormindo na calçada abaixo de um muro branco com nomes e números de políticos candidatos a deputado estadual e federal. “Justiça e Igualdade Social”.
“Há, há, há! Bem se vê!”
Fiquei tão concentrado naquilo tudo, analisando o contraste da situação, que quando dei conta de onde estava já havia ultrapassado dois quarteirões do ponto. Mais à frente haveria outro ponto de ônibus, então segui com atenção pra não passar o próximo. E quanto mais se pensa na merda, mais a merda fede. Naquele ponto pra onde seguia, certa vez, voltando da casa da vó parei nele, pois precisava andar um pouco e arejar antes de pisar em casa. Bem, por um lado a merda trás sorte mesmo, neste dia, apenas alguns instantes após descer do ônibus ouvi dois disparos, mesmo assustado corri pra ver o ocorrido e logo avistei o ônibus parado, os passageiros em sua maioria na calçada e em choque. Quando cheguei bem perto pude ver estilhaços de vidro e ouvir um falatório.
“... ele disparou duas vezes de fora do ônibus... anunciou o assalto... partiu pra agressão com alguns... ele pegou tudo rapidinho e saiu... eu abaixei e rezei... os tiros acertaram o pobre do motorista e a senhora, que Deus a tenha, que estava atrás do motorista...”
Quando vi os corpos no ônibus...
“Justamente onde estava sentado. Meu, meu De...”
Sentia náusea, calafrios, sei lá, nem sei descrever.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
Ansioso, tirei as roupas e larguei-as no caminho. No banheiro aproveitei pra admirar o que Deus dá. Uma olhadinha de perfil, de frente, de costas, outro perfil... Tudo bem rapidinho pra não botar defeitos. Abri a cortina e lá estava ela, provocante e irresistível, a dúvida: gelado ou pelando? Senti o clima. O clima no banheiro parece invariável quando se está pra resolver este dilema. Vai pelando mesmo, rapidinho, gelado hoje nem pensar. Acho que os chuveiros que estão dentro do orçamento de um escritor, por hobby, e, um “carrega tudo”, por força da sobrevivência, enfim, os chuveiros só vêm com duas estações, uma é a morra de frio e a outra é a queime no inferno, neste caso quase sempre fico com a “sola de sapato” – bife nervoso e tostado. Geral nos amiguinhos do “corram que o dentista vem aí”, um short, uma regata e aquela chinelada. Um minuto de silêncio. Bilhetes? Três pra ir, três pra voltar, isqueiro, cigarros... Xiii... Dinheiro! Uma olhadinha na foto das irmãs Cardoso.
Tranquei a porta, mas não fechei as janelas. Acho que não, com esse tempo, acho que não. Desci as escadas como que flutuando, e lá, bem lá no lugar esperado, como sempre, ela, a mais velha, a Padaria do Cardoso.
“Bom dia Cardoso, Isa, dois maços e um cafezinho, por favor.”
Ela estava meio murcha, mas linda, já o padeiro não disfarçava a péssima noite que passou e a voz enrolada logo cedo. Ele nunca foi de beber. Bebi o café servido num copo americano e paguei.
"Obrigado Cardoso, Isa, até mais."
Saí.




terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


Capitulo 1
Na Vó
Acordei às dez da manhã de um domingo ensolarado. Sentia uma leve dor nas costas e pescoço devido há horas frente à TV do quarto, mais precisamente à posição preferida e torta, da qual sento na cama diariamente pra ler, assistir filmes, etc. Na cozinha, coloquei água pra ferver, acendi um cigarro no caminho do banheiro, e lá, como num exercício religioso, sentei e pensei em nada. Nos primeiros instantes acordado, não penso em nada, mas conforme a brasa chega mais próxima aos meus dedos, aquecendo, ou às vezes queimando-os, é que começo a organizar as tarefas do dia. Por ser domingo um dia de nada pra dever, demorei pra pensar, a brasa não queimava e só dei conta de algo ao ouvir o fervor d’água. A primeira tarefa do dia era preparar um café melado. Apesar de dependente, tomar a qualquer hora e lugar, quente ou frio, nenhum pode ser mais prazeroso que o café que preparo à gosto. Em raras visitas a casa da vovó, mal recebo os cumprimentos e já estou na cozinha a fumegar um cafezinho, que depois de pronto haja cigarros pra dar efeitos aos contos da velhota.
“... e uma vez fui presa junto com seu tio, ele só tinha catorze na época, acho. Foi junto comigo receber alguns pro seu avô em Jacutinga. O Blota, amigo do seu avô, tentou avisá-lo a tempo de não irmos, mas já era tarde. Chegando lá, logo na entrada nos pegaram, fiquei lá um dia. Seu avô, que o diabo o queime, pediu pro amigo pegar seu tio na delegacia, nem apareceu por lá, acho que tinha mais medo de mim do que da polícia. Só escapei dessa depois de um dia, quando veio o delegado, um moço bonito que me perguntou se eu gostava de ajudar aos pobres. Bem, disse-lhe logo que sim sem hesitar e sem mais nem menos fui solta dali. Nunca, nunca mais falei disso com seu avô e também jamais o perdoei. Agora que ele tá morto...”
Tomei café, liguei pra vó, avisei-lhe sobre a visita e pedi que fizesse farofa de cenoura pro almoço.
“... parece até que adivinhei que você vem. Devo estar com sorte! Será que é hoje que acerto no jogo? Vou fazer a farofa sim, pode vir...”

A Cor da Flor




Tenho uma escrivaninha bem surrada no canto da sala, com duas gavetas pequenas. Numa gaveta guardo os óculos velhos, sem lentes, noutra um relógio do camelô quebrado. Decorando o centro da mesa tem um vaso de flores sem flores, mas com folhas. Não consigo lembrar de que cor são as flores, ou melhor, de que cor eram as flores. Ganhei o vaso de flores do seu Cardoso da padaria, ele tem lá seus cinqüenta e sete anos, mora com dona Isabel, mãe de seus dois primeiros filhos. Disse filhos? Bem, trata-se de Isabel, 25, e Belisa, 19. Isabel e Belisa são completamente o oposto uma da outra a começar pelos nomes: o prefixo de um é o sufixo do outro e vice e versa. Já provei dos dotes de Isabel, e também – que o Cardoso não ouça – já fiz uns carinhos em Belisa. Fora as duas crias, dizem por aí e principalmente no estabelecimento do Nadir, que seu Cardoso tem um filho de nove com uma angolana do centro e uma recém nascida com uma freguesa pinguça da sua "atual" padaria, donde nem o próprio diabo que amassa os pães compra lá. Apesar dos negócios do Cardoso terem quase que naufragado após a inauguração da padaria sofisticada do seu Nadir, um italiano mais com cara de judeu, o seu “boteco” ainda botava comida na boca da ninhada e saciava os bêbados que por ali baixavam.
Naquele dia, o dia em que ganhei flores, o Cardoso afogava as mágoas entre um e outro freguês...