quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó



(...)
Acho que a escrivaninha surrada, com duas gavetinhas e um pequeno vaso de flores sem flores é a coisa mais valiosa que tenho em casa. As folhas me levam a descobrir as flores, que por sua vez me levam a pensar em cores. Cores que faltam em uma história que anda vagarosamente sem saber se haverá, será, amará, se poderá ser enfim. Espero achar algo de tom ensurdecedor enquanto tiver raiva para não precisar gritar, encontrar cor pra alegrar os dias mais nebulosos, conseguir pisar num lugar capaz de fazer existir o que pensam os sonhos.
“Tchau vó. Ligo assim que chegar lá.”
Preciso estar livre de tudo isso, sim, estar livre do rastro dos que me perseguem e acham-se no direito de dizer os caminhos certos, pois deles só quero o mais errado, o desprezo, é isso, é do desprezo de todos que preciso pra subir degraus mais altos, pra sublimar os desejos em vida, preciso de todos contra um, de todos assustados com o talento e a independência do ser mais verdadeiro daqui, do coração.
De um ponto pra outro, uma estação, metro, baldeação, outra estação, outro ponto, ponto final.
Desci no ponto certo, caminhei, era tardezinha, escurecia e refrescava entre as casas e estabelecimentos de um cenário natal, da padaria do Nadir à do Cardoso.
“Boa tarde Cardoso, Bel.” Já era Belisa cansada e envergonhada, tímida.
Cardoso cambaleava entre copos e bêbados, garrafas vazias e seu choramingo de coitado.

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
O elevador é assustador, ele treme e ruge demasiadamente, os pés ficam dormentes, algumas agulhadas nos vasos sanguíneos, as costas e ombros ficam tensos, o corpo toma o tamanho de um bebê, uma leve tontura, alguns ecos nos tímpanos, os olhos piscam inquietantes como as luzes do teto, algo parece flutuar por um único instante, depois parece despencar nove andares num milésimo de segundo, não despenca, pára, brusco, rosto pálido, abre e nasce outra vez.
"Meu bebê, como você está?.. Entra!.. Pega o cinzeiro... Quero no copo americano... Já pôs açúcar?.. Tá trabalhando?.. Tua mãe era linda... Olhe esta foto... Seu pai? E os estudos? Desistiu de tudo?.. Que bom que você gostou, faço esta farofa há séculos e mesmo assim fico com medo quando é pra você... Cuidado com o sofá que ganhei da sua tia...Tá namorando?.. Tem se cuidado?.. Passa outro cafezinho meu bem?!"
Os primos e as primas estavam todos formados, ganhando aos tubos, viajando por aqui e acolá, sendo objetos de orgulho para os pais, todos cheiravam bem, eram lindos, nos porta retratos todos brilhavam à minha frente, eram como coelhinhos da páscoa que só botavam ovos de 1 quilo ou mais, suas árvores de Natal eram carregadas de enfeites por todos os ângulos, não como aquelas que só se pode olhar em cento e oitenta graus, seus presentes eram caros, suas vidas eram planejadas, assim como os móveis de seus imóveis de luxo, casavam, descasavam, processavam, adotavam, davam entrevistas, enfim, eles eram tudo o que este bebê de trinta e dois não era e não será, para não ser cuspido de uma forma tão pedante.
“... Você está me ouvindo? É claro que não, tá sempre neste mundo fechado, de mal com tudo e todos, todos eles te amam, querem saber de você, e o que eu falo? Hein? Diz-me o que dizer de você? Jovem, capaz como os outros, mas prefere uma vidinha medíocre, prefere sofrer, carregar, isso não é coisa pra você, não foi pra isso que eu te criei...”
Queria explodir. Queria que todo aquele apartamento mobiliado de presentes ficasse manchado do sangue fétido de pobreza.
“Licença, preciso ir ao banheiro.”
Vomitei, chorei, vomitei de novo, tentei não fazer barulho, lavei o rosto, a boca, as mãos, a boca... Fiquei a olhar pro espelho um tempo, um bom tempo.

sábado, 8 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
Passei pela padaria do Nadir. A Pães&Petiscos tinha muitos clientes que outrora eram da padoca do Cardoso. Acenei para alguns conhecidos, acendi um cigarro e segui na direção do ponto. No caminho, um bêbado cantando, um mendigo dormindo na calçada abaixo de um muro branco com nomes e números de políticos candidatos a deputado estadual e federal. “Justiça e Igualdade Social”.
“Há, há, há! Bem se vê!”
Fiquei tão concentrado naquilo tudo, analisando o contraste da situação, que quando dei conta de onde estava já havia ultrapassado dois quarteirões do ponto. Mais à frente haveria outro ponto de ônibus, então segui com atenção pra não passar o próximo. E quanto mais se pensa na merda, mais a merda fede. Naquele ponto pra onde seguia, certa vez, voltando da casa da vó parei nele, pois precisava andar um pouco e arejar antes de pisar em casa. Bem, por um lado a merda trás sorte mesmo, neste dia, apenas alguns instantes após descer do ônibus ouvi dois disparos, mesmo assustado corri pra ver o ocorrido e logo avistei o ônibus parado, os passageiros em sua maioria na calçada e em choque. Quando cheguei bem perto pude ver estilhaços de vidro e ouvir um falatório.
“... ele disparou duas vezes de fora do ônibus... anunciou o assalto... partiu pra agressão com alguns... ele pegou tudo rapidinho e saiu... eu abaixei e rezei... os tiros acertaram o pobre do motorista e a senhora, que Deus a tenha, que estava atrás do motorista...”
Quando vi os corpos no ônibus...
“Justamente onde estava sentado. Meu, meu De...”
Sentia náusea, calafrios, sei lá, nem sei descrever.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


(...)
Ansioso, tirei as roupas e larguei-as no caminho. No banheiro aproveitei pra admirar o que Deus dá. Uma olhadinha de perfil, de frente, de costas, outro perfil... Tudo bem rapidinho pra não botar defeitos. Abri a cortina e lá estava ela, provocante e irresistível, a dúvida: gelado ou pelando? Senti o clima. O clima no banheiro parece invariável quando se está pra resolver este dilema. Vai pelando mesmo, rapidinho, gelado hoje nem pensar. Acho que os chuveiros que estão dentro do orçamento de um escritor, por hobby, e, um “carrega tudo”, por força da sobrevivência, enfim, os chuveiros só vêm com duas estações, uma é a morra de frio e a outra é a queime no inferno, neste caso quase sempre fico com a “sola de sapato” – bife nervoso e tostado. Geral nos amiguinhos do “corram que o dentista vem aí”, um short, uma regata e aquela chinelada. Um minuto de silêncio. Bilhetes? Três pra ir, três pra voltar, isqueiro, cigarros... Xiii... Dinheiro! Uma olhadinha na foto das irmãs Cardoso.
Tranquei a porta, mas não fechei as janelas. Acho que não, com esse tempo, acho que não. Desci as escadas como que flutuando, e lá, bem lá no lugar esperado, como sempre, ela, a mais velha, a Padaria do Cardoso.
“Bom dia Cardoso, Isa, dois maços e um cafezinho, por favor.”
Ela estava meio murcha, mas linda, já o padeiro não disfarçava a péssima noite que passou e a voz enrolada logo cedo. Ele nunca foi de beber. Bebi o café servido num copo americano e paguei.
"Obrigado Cardoso, Isa, até mais."
Saí.




terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Cor da Flor - Capitulo 1: Na Vó


Capitulo 1
Na Vó
Acordei às dez da manhã de um domingo ensolarado. Sentia uma leve dor nas costas e pescoço devido há horas frente à TV do quarto, mais precisamente à posição preferida e torta, da qual sento na cama diariamente pra ler, assistir filmes, etc. Na cozinha, coloquei água pra ferver, acendi um cigarro no caminho do banheiro, e lá, como num exercício religioso, sentei e pensei em nada. Nos primeiros instantes acordado, não penso em nada, mas conforme a brasa chega mais próxima aos meus dedos, aquecendo, ou às vezes queimando-os, é que começo a organizar as tarefas do dia. Por ser domingo um dia de nada pra dever, demorei pra pensar, a brasa não queimava e só dei conta de algo ao ouvir o fervor d’água. A primeira tarefa do dia era preparar um café melado. Apesar de dependente, tomar a qualquer hora e lugar, quente ou frio, nenhum pode ser mais prazeroso que o café que preparo à gosto. Em raras visitas a casa da vovó, mal recebo os cumprimentos e já estou na cozinha a fumegar um cafezinho, que depois de pronto haja cigarros pra dar efeitos aos contos da velhota.
“... e uma vez fui presa junto com seu tio, ele só tinha catorze na época, acho. Foi junto comigo receber alguns pro seu avô em Jacutinga. O Blota, amigo do seu avô, tentou avisá-lo a tempo de não irmos, mas já era tarde. Chegando lá, logo na entrada nos pegaram, fiquei lá um dia. Seu avô, que o diabo o queime, pediu pro amigo pegar seu tio na delegacia, nem apareceu por lá, acho que tinha mais medo de mim do que da polícia. Só escapei dessa depois de um dia, quando veio o delegado, um moço bonito que me perguntou se eu gostava de ajudar aos pobres. Bem, disse-lhe logo que sim sem hesitar e sem mais nem menos fui solta dali. Nunca, nunca mais falei disso com seu avô e também jamais o perdoei. Agora que ele tá morto...”
Tomei café, liguei pra vó, avisei-lhe sobre a visita e pedi que fizesse farofa de cenoura pro almoço.
“... parece até que adivinhei que você vem. Devo estar com sorte! Será que é hoje que acerto no jogo? Vou fazer a farofa sim, pode vir...”

A Cor da Flor




Tenho uma escrivaninha bem surrada no canto da sala, com duas gavetas pequenas. Numa gaveta guardo os óculos velhos, sem lentes, noutra um relógio do camelô quebrado. Decorando o centro da mesa tem um vaso de flores sem flores, mas com folhas. Não consigo lembrar de que cor são as flores, ou melhor, de que cor eram as flores. Ganhei o vaso de flores do seu Cardoso da padaria, ele tem lá seus cinqüenta e sete anos, mora com dona Isabel, mãe de seus dois primeiros filhos. Disse filhos? Bem, trata-se de Isabel, 25, e Belisa, 19. Isabel e Belisa são completamente o oposto uma da outra a começar pelos nomes: o prefixo de um é o sufixo do outro e vice e versa. Já provei dos dotes de Isabel, e também – que o Cardoso não ouça – já fiz uns carinhos em Belisa. Fora as duas crias, dizem por aí e principalmente no estabelecimento do Nadir, que seu Cardoso tem um filho de nove com uma angolana do centro e uma recém nascida com uma freguesa pinguça da sua "atual" padaria, donde nem o próprio diabo que amassa os pães compra lá. Apesar dos negócios do Cardoso terem quase que naufragado após a inauguração da padaria sofisticada do seu Nadir, um italiano mais com cara de judeu, o seu “boteco” ainda botava comida na boca da ninhada e saciava os bêbados que por ali baixavam.
Naquele dia, o dia em que ganhei flores, o Cardoso afogava as mágoas entre um e outro freguês...