segunda-feira, 23 de maio de 2011

Texto Teatral

BRINCADEIRA IMAGINÁRIA Victor Hugo Marson

Sons de crianças e ventania. Poucas luzes se acendem como num universo paralelo. Um montinho de areia, e só. As personagens parecem pedras de gelo e em rápida sublimação, ganham vida lúdica.

Dóris – Por que você tem um dente pra frente e outro pra trás?

Carlos Eduardo – Para sair o ar.

Dóris – Ah (esconde o riso, PAUSA LONGA) Me dá um pedacinho da sua torrada?

Carlos Eduardo – Não, estou com fome. Minha mãe disse que a comida em casa é escassa e eu tenho que aprender a valorizar. Ela disse assim, oh: Murilo, quando eu compro algo é para você comer, você, entendeu?

Dóris – Ah. (soluça) De vez em quando me dá vontade de comer alguma coisa que outra pessoa está comendo. Você também tem isso?

Carlos Eduardo – Não.

Dóris – Por que você é tão chato, hein?

Carlos Eduardo – Eu não sou chato.

Dóris – É sim, você deve ser daqueles boboquinhas que ninguém chega perto. Fica brincando sozinho no recreio. Conheço uma menina na escola, que dizem que ela já tem até amigo fantasma.

Carlos Eduardo – Amigo imaginário, boboca.

Dóris - Desde quando você tem um?

Carlos Eduardo – Eu? Eu... Como você sabe?

Dóris – Eu vi você passando no corredor da escola. Vi sim. Vi pelo vidro da porta. A senhora Trumbel falava demais dos acontecimentos na casa dela, sabe. O marido que bebe demais e espanca o filho, o filho que não passa de ano e outras coisas que já sabemos de cor. Então olhei fixamente para o vidro redondo da porta, queria me distrair. Vi você. Passou rapidinho, mas depois percebi que falava com alguém. Quem era?

Carlos Eduardo – Quando?

Dóris - Hoje mesmo, depois do recreio.

Carlos Eduardo - Não havia ninguém comigo sua boba.

Dóris - Claro que tinha, ou então, além de chato você é um bobão que fala sozinho.

Carlos Eduardo – Bobão...

Dóris - Fala logo! Você tem um?

Carlos Eduardo - Não quero falar sobre isso. Ele não gosta.

Dóris – Ele quem? Como ele chama? Fala só pra mim.

Carlos Eduardo - Não enche. Vou entrar senão minha mãe vai ficar brava comigo, tenho muita lição pra fazer. Tchau, boboca.

Dóris – Tchau (enfurecida)

Carlos Eduardo – Você pode me responder uma coisa antes?

Dóris – Depende boboca.

Carlos Eduardo – O que você viu quando eu passei no corredor?

Dóris – Ah, você parecia que gesticulava, mas não era musica não, pelo menos acho que não. Você falava com alguém ao lado, alguém que não deu pra ver.

Carlos Eduardo – Claro.

Dóris – Claro? Como claro? Nada está claro.

Carlos Eduardo – Claro que você não viu ninguém. Não havia ninguém. E ponto.

Dóris – Ponto, ponto, ponto, ponto, ponto, ponto... (segue irritantemente repetindo, como disco riscado)

Carlos Eduardo – Pára Dóris, já cansou. Tenho que ir.

Dóris – Ir pra onde?

Carlos Eduardo – Pra casa, fazer lição, escovar os dentes. Se minha mãe descobre que comi e não escovei os dentes, ela vai ficar furiosa.

Dóris – Dá um sorriso pra mim?

Carlos Eduardo – Claro! (sorri forçado, ridículo)

Dóris – Ótimo! Agora além de lunático, você tem os dentes tortos mais amarelados que já vi.

Carlos Eduardo – Pára Dóris!

Dóris – Não paro, não paro, não paro... (disco riscado)

Carlos Eduardo – Está bem Dóris, fecha essa maldita boca, sua putinha de luxo! (Dóris se assusta, não entende muito bem, soluça.) Não chore! (Dóris soluça novamente) Você nem sabe o que é isso.

Dóris – Claro que sei.

Carlos Eduardo – O que é?

Dóris – É alguma coisa ruim, só isso.

Carlos Eduardo – Mentirosa, sabe nada, meu pai que me disse: Filho, quando você crescer, vai ser tão rico, tão rico, que ao invés de casar com uma mulher como sua mãe, você vai arrumar uma putinha de luxo! Elas são bem mais bonitinhas, e não reclamam do desempenho.

Dóris – Desempenho?

Carlos Eduardo – Pois é, isso eu não entendi muito bem. Mas que era coisa boa, era. Não te disse.

Dóris – Ta bem, não ia chorar mesmo.

Carlos Eduardo – Mentirosa!

Dóris – Eu não minto, não falo com “ninguém”, e oh (faz gesto de quantidade com as mãos) estou cheia de amigos pra brincar no recreio. Devo ser uma putinha de luxo, como seu papai disse. (PAUSA) Sabe, ele só mentiu pra você numa coisa.

Carlos Eduardo – No que?

Dóris – Você nunca vai casar com uma putinha de luxo como eu, nunca, nunquinha!

Carlos Eduardo – (cansado) Tchau Dóris.

Dóris – Você não vai me falar mesmo? Quem sabe quando eu crescer eu mude de opinião.

Carlos Eduardo – Falar o quê?

Dóris – O nome dele, ou dela.

Carlos Eduardo – Dóris não tem nada! É tudo imaginação da sua cabeça! Pára! Não enche! Tchau!

Dóris - Vai logo. Nunca mais fala comigo! Laia!

Carlos Eduardo – Que?

Dóris – Laia!

Carlos Eduardo – O que é?

Dóris – Laia! Laia! Laia!

Carlos Eduardo – Saco! Saco! Saco!

Dóris – Pára de me imitar. (quase chorando de raiva)

Carlos Eduardo – Então me diz o que é laia?

Dóris – (respira fundo) Laia? Bem, minha mamãe sempre diz aos vendedores que batem à porta: Não quero! Não Volte! Não gosto! Não falo com gente da sua Laia! (ri baixinho) Eu acho muito engraçado quando ela fala isso: Laia! Mas sei que é palavrão.

Carlos Eduardo – Ah... É... Deve ser.

Dóris – Você não ia embora?

Carlos Eduardo – Ah, minha mãe saiu, volta tarde. Você não quer mais brincar comigo?

Dóris – (fecha a cara) Não sei.

Carlos Eduardo – Por que você está zangada?

Dóris – Por que você não me diz o nome dela, e eu não gosto de ter concorrentes.

Carlos Eduardo – Quem é ela? Que concorrentes?

Dóris – Não começa Carlos Eduardo, senão está tudinho acabado! Esteja dito!

Carlos Eduardo – (impaciente) Dóris, do que você está falando?

Dóris – (zangada) Você não queria brincar? Você não sabe brincar! Agora tchau mesmo, boboca. (SAI)

Carlos Eduardo – Volta! Volta! Quem é ela? Saco! (SAI)

BLECAUTE LONGO: Sons de crianças e ventania.

Dóris está sentada num montinho de areia. Vê Carlos chegando tímido, finge que não o vê e faz de conta que conversa com alguma amiga só em ruídos baixos. Carlos fica curioso, primeiro olha à distância, depois se aproxima um pouquinho e pára.

Carlos Eduardo – Você também? (Dóris na mesma) Você também Dóris? (PAUSA) Dóris? Se você me falar o nome do seu, eu te digo o nome do meu. (Dóris pára de fingir, assustada e medrosa, mal olha para Carlos e corre) Dóris! Dóris! Dóris! (PAUSA LONGA) Que foi? Agora não! To bravo com você. Você tinha falado que conhecia todos como você, que eram poucos e que ela não tinha. Você me quer a toda hora. Não me deixa brincar com os outros iguais a você, nem com outros como eu. Sai! Sai! Sai! (Senta no montinho, cabeça baixa, soluça, fica)

“Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi...”
(Dóris interrompe)

Dóris – (sussurra) Carlinhos.

Carlos Eduardo – (salta) Dóris, você me assustou!

Dóris – Desculpe, desculpe mesmo. Agora que já sei do seu segredo, você podia apresentar seu amigo pra mim. Podemos formar um trio.

Carlos Eduardo – Não dá mais.

Dóris – Por que não?

Carlos Eduardo – Mandei ele ir embora.

Dóris – Boboca! Por que você fez isso?

Carlos Eduardo – Ah, sua chata! Você saiu correndo de mim e eu fiquei bravo com ele, porque ele não me disse que você também tinha um.

Dóris – Não, não tenho. Só fingi.

Carlos Eduardo – Mentirosa. Olha só aqui pra mim, Dóris. Nunca mais quero falar com você, nem ninguém, ninguém! (SAI)

Dóris – (choraminga) Volte aqui, por favor... Volta... (senta-se no monte de areia, abaixa a cabeça e fica)

“Era uma casa
Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia

Entrar nela não

Porque na casa

Não tinha chão

Ninguém podia

Dormir na rede

Porque a casa

Não tinha parede

Ninguém podia

Fazer pipi

Porque penico

Não tinha ali

Mas era feita
...”

(algo interrompe e Dóris assusta) Quem é? (mais encolhida) Quem é? (soluçando) Pára Dudu. (grita) Pára! (chora)

A LUZ APAGA

“... Mas era feita
Com muito esmero

Na Rua dos Bobos

Número Zero.

FIM

Musica “A Casa”; composição de Vinicius de Moraes.

Victor Hugo Marson